23 de Agosto de 2006
Começou por ser um dia igual aos outros. Acordei um pouco mais tarde, a C. tinha passado a noite na casa da tia, dei-me a esse prazer. Na noite anterior não me tinha sentido muito bem e estava cada vez mais cansada, o G. tirou o dia para ficar comigo. Por volta das 2h menos 10, teve de sair para pagar a conta de água que tinha chegado atrasada. Fiquei em casa, sozinha. Dez minutos depois de ele ter saído sinto um pontapé fortíssimo da M. sob a zona da bexiga. Podia ter sido um pontapé mais forte, passou, não liguei. Deitei-me no sofá calmamente, fechei os olhos e tentei descansar. O telemóvel tocou e quando me levantei para atendê-lo, sentia-me estranha, o corpo parecia mais leve, estranhamente leve demais. Só depois notei o vestido húmido atrás e a mancha no sofá. Sem me aperceber tinha começado a perder líquido. No espaço de tempo em que pela última vez aqui escrevi, apressei-me a ligar ao G. a contar o sucedido, tomei um duche rápido (acho que foi o mais rápido que tomei até hoje), coloquei a minha malinha e a da M. à porta de casa e esperei que ele chegasse. A parte boa era que não sentia dores nenhumas, sentia-me apenas muito leve, e espantosamente calma, demasiado até. No meu pensamento uma única certeza, tudo ia correr bem. O G. pôs-se em casa em menos de 1/4 de hora. Estava nervosíssimo. Descemos para o carro e mal me sentei no banco senti a primeira contracção. E voltei a sentir outra, e mais outra, vinham com intervalos irregulares mas ainda eram suportáveis. Cerca de 25 minutos até ao Hospital, que fica quase do outro lado de Lisboa, e isto porque era altura de férias e a autoestrada não estava a rebentar pelas costuras. Chegámos ao hospital por volta das 3h30, sensivelmente. Entrei logo, enquanto o G. ultimava a minha inscrição, fui logo vista. Apenas 2 cms de dilatação mas o suficiente para me levarem para a sala de partos. Ligaram-me a soro, CTG, mandaram-me vestir uma bata branca. Fechei os olhos e de novo o pensamento de que tudo só podia correr bem. As contracções já começavam a aumentar de intensidade e chegavam com intervalos de 8 em 8 minutos. Já eram mais que insopurtáveis e sentia-as chegar uma a uma, mesmo antes de se manifestarem. Nisto, uma enfermeira entrou com toalhas húmidas e pergunta-me "Tem a certeza que não quer?". Eu sempre disse que não queria, que ia fazer o possível para suportar as dores, que ia dar tudo de mim para conseguir um parto completamente natural, que queria passar pela experiência (mesmo que depois me viesse a arrepender), que a minha mãe teve 6 filhas todas sem epidural e está aí para as curvas, que não queria que me espetassem mais agulhas, que apesar de tudo estou longe de ser masoquista. Respondi que não, mesmo no pico de uma contracção consegui manter a palavra. Nesta altura, já eu era só dores, contorcia-me toda a cada nova contracção, e o meu obstetra onde estava? De vez em quando a mesma enfermeira voltava com mais toalhas húmidas e para observar-me. "4 cms, já tem 4 cms!" E voltava a sair da mesma forma que entrava. Eu já não me sentia, doía-me tudo. Cada contracção era como uma roda de um tractor a passar-me por cima do útero, cada vez com mais força. De repente, ouço um "Então mamã?" que me é familiar, era o Dr. F acabado de chegar de uma maratona de consultas. Observou-me e ainda 4 cms de dilatação, ou seja, durante praticamente a última hora não tinha havido evolução nenhuma. Eram umas 5h15, já estava há mais de 2 horas em trabalho de parto e sem qualquer tipo de anestesia! Observou os batimentos cardíacos da M., tudo normal, disse para permanecer calma que voltava uns minutos depois. Voltou e tudo na mesma, 4 cms de dilatação. Disse-me que se durante a meia hora seguinte não houvesse uma evolução significativa, teria de fazer cesariana. Eram 5h30. Já estava há 2 horas e meia em pleno trabalho de parto. Cesariana? Não quis acreditar e chorei, compulsivamente. Mais do que as dores que me consumiam, chorei a eventualidade de ver o meu desejo de um parto normal ser novamente preterido, tal como aconteceu com a C. Apertei a mão do G. com força e não precisei dizer nada para agradecer-lhe o facto de estar a meu lado, a apoiar-me, incondicionalmente. [Se não tivesses estado ali, comigo, a segurar-me a mão e a passar-me gelo nos lábios entre as contracções, se não fosse a tua presença, os teus mimos e cuidados constantes, não teria conseguido suportar ouvir aquilo.] Mesmo assim, não parava de chorar, sentia que todo o esforço por que estava a passar tinha sido, mais uma vez, inútil face à eventualidade de uma cesariana. Ao mesmo tempo, foi como se passasse um filme na minha cabeça, a gravidez desde o início, o instante em que a M. foi concebida, os bons momentos, os maus momentos, as consultas (lembrei-me de tudo), a noite em que fui para as urgências em risco de descolamento da placenta, a recomendação do médico de repouso absoluto (era tudo tão claro na minha cabeça), os dias inteiros passados em casa a arrumar as roupinhas da M, a preparar-lhe o quarto, um mundo de expectativas...Para quê? Senti que não merecia estar a passar por aquilo. Os flashs teimavam em surgir em catadupa na minha mente, a acompanhar as contracções, e eu chorava, não do corpo em sofrimento mas das dores na alma. Cheguei a um ponto em que pensei que já não suportava mais aquilo, tentei concentrar-me na ideia de que mesmo sendo cesariana, só o facto de ter finalmente a minha filha à minha frente, ia acabar por superar tudo. Entretanto, a enfermeira voltou para observar-me. Saiu a correr, a chamar o Dr. F que entrou acompanhado de outro médico e de mais uma enfermeira. Não reagi. Vão preparar-me para a cesariana, calculei. Afinal estava com 6 cms de dilatação. "Agora é que já não leva mesmo!", disse-me a enfermeira referindo-se à epidural. Já estava consumida pelas dores, só queria que a minha filha nascesse, normal ou cesariana, com ou sem epidural. Depois não me recordo com precisão, ouvia muitas vozes à minha volta, médicos, enfermeiras, continuava de olhos fechados e já não pensava em nada, as dores consumiam-me o corpo e a mente. Minutos depois, a enfermeira assegurava "8 cms de dilatação!", o Dr. F repetia para não fazer força ainda. Lembro-me do G. me dizer baxinho, "É agora! É agora!" enquanto me segurava a mão. O som dos batimentos cardíacos da M. de fundo, a minha cabeça a 1000 à hora, o corpo a avisar estar no limite de todas as forças. De repente, sinto uma vontade enorme de fazer força e embora esta já não fosse muita, sinto que não consigo controlá-la, torna-se superior a mim. Um médico chamou o G, e sinto-o largar levemente a minha mão. Abro os olhos e vejo-o emocionado, a rir e a chorar ao mesmo tempo. Nunca o vi chorar assim. Até que alguém na sala diz "Agora sim, faça toda a força que conseguir". Mas já não consigo, tento, mas já não consigo. O G. toma-me de novo a mão e segredou-me que quando a apertasse, faziamos força os dois. Apertou, e não sei de onde veio a força que fiz em seguida, só sei que não a sabia capaz de ter dentro de mim. Aos poucos, sinto a Maria passar através de mim, os ossos parecia que estalavam, o corpo a afastar-se, a dor era tanta que já me sentia dormente a ela, já fazia parte de mim. Ouço a Maria chorar, não consigo descrever a sensação, foi um misto de alegria, emoção, alívio, tudo. Abro finalmente os olhos, já a colocaram sobre mim. O G chorava que nem um doido em cima do meu peito. Uma mantinha branca e rosa e uma menina no meio, toda suja, os olhos cerrados, as mãozinhas fechadas. Perfeita. O pai fez questão de cortar o cordão e enquanto era cosida (sim, a rapariga deu cabo de mim:), a M já era limpa e vestida pelas enfermeiras, e nós mesmo de longe tentávamos adivinhar-lhe os traços e registar-lhe as feições rosadas.
A M. nasceu às 19h04 m, depois de 4 longas horas de trabalho de parto. Escolhi não levar a epidural, mas se fose agora, certamente que não a teria renegado. Foi uma experiência única? Foi. Sofri muito? Se sofri! Foi aquilo que sempre idealizei ser um parto normal? Bem, a verdade é que foi muito mais doloroso do que alguma vez imaginei, nunca pensei que fosse tão difícil suportar um nascimento, até ter realmente a noção de todo o esforço que envolve colocar um filho no mundo. Mas se custou muito ter vivido tudo aquilo, ter sentido na pele o sofrimento e a exaustão, e ainda toda a componente fortemente emotiva que um parto normal envolve, agora, já depois de ter a minha filha nos braços, não consigo concebê-lo de outra forma, hoje, só assim tudo me faz sentido. Enquanto isso, levaram-me a mim e à minha filha para o recobro. Vi-lhe os olhinhos abertos pela primeira vez enquanto a amamentava. Não conseguia tirar os olhos dela. Mas estava tão cansada que acabei por adormecer. Acordei por volta das 23h, já no quarto, com o choro da M. que estava ao colo do pai, a meu lado. Deitámo-la no meio de nós e ficámos a contemplá-la à meia luz que entrava pela janela. Adormeceu, serena, como se nada se tivesse passado. O corpo estava dorido e ainda não esquecera as mazelas do parto, mas a felicidade que sentia dentro de mim sobrepunha-se a qualquer intempérie por que viesse a passar. Já passou, disse-me o G, com uma festa. Dentro do quarto, nós os três. Noutro quarto mais distante a C. a dormir igualmente, compenetrada. Lá fora, lua nova. A mesma que nos iluminava os rostos e acredito entrava algures também pela janela da C, com o mesmo brilho e intensidade. Naquela noite, tenho a certeza que a lua lhe segredou ao ouvido que apartir daquele momento tinhamos passado a ser 4.